segunda-feira, 14 de julho de 2014

LEITURAS

REDESCOBRIR EÇA
Nos últimos dias de trabalho deste ano letivo, pus-me a reler Eça, mais precisamente "O Mandarim", obra fantástica e fascinante, cheia de preciosidades e de encantamento.
No prólogo, é-nos dado o mote para a reflexão que se pretende inculcar. Dois amigos, dialogam. Diz o primeiro (bebendo conhaque e soda, debaixo de árvores, à beira-de água):
- Camarada,  por estes calores do Estio que embotam a ponta da sagacidade, repousemos do áspero estudo da Realidade humana...
Partamos para os campos do Sonho, vaguear por essas azuladas colinas românticas onde se ergue a torre abandonada do Sobrenatural, e musgos frescos recobrem as ruínas do Idealismo...
Façamos fantasia!...
O outro responde:
- Mas, sobriamente, camarada, parcamente!... E como nas sábias e amáveis alegorias da Renascença, misturando-lhe sempre uma Moralidade discreta... (Eça de Queirós, O Mandarim, Ed. Livros de Brasil, 2003, Lisboa, página 17).
Há dias, querendo mandar um mail a uma colega de profissão, e para o tornar mais interessante, resolvi citar esta passagem, que no fundo, introduz a temática do conto ficcional, em contraposição com o conto realista, assente no estudo da realidade concreta. Mandei a mensagem, mas como não obtivesse retorno, questionei-a sobre se já tinha recebido os três anexos de um trabalho em comum. Mais tarde, na companhia de outras colegas de trabalho, constatei o meu lapso: tinha enviado "tudo", os anexos e o texto queirosiano, para uma outra pessoa que por sinal também se chamava Maria. O que não se riram elas, dos dizeres do mestre da escrita, ao atribuir significados e conotações sui generis, só pelo facto de não estarem dentro do contexto. Valeu a pena o desvio da mensagem, só pelo prazer de rirmos juntos.
Continuemos. Noutra reunião de disciplina, ao ser sugerido, nos cursos profissionais, a abordagem de uma obra de Eça de Queirós no 12º ano, quase todos referiram ou "Os Maias" ou "A cidade e as serras". Eu disparei: 
- E por que não "O Mandarim?"
"Eu chamo-me Teodoro - e fui amanuense do Ministério do Reino.
Nesse tempo, vivia eu à Travessa da Conceição, nº 106, na casa de hóspedes da D. Augusta, a esplêndida D. Augusta, viúva do major Marques. Tinha dois companheiros: o Cabrita, empregado na Administração do Bairro Central, esguio e amarelo como uma tocha de enterro; e o possante, o exuberante tenente Couceiro, grande tocador de viola francesa.
A minha existência era bem equilibrada e suave. Toda a semana, de mangas de lustrina à carteira da minha repartição, ia lançando, numa formosa letra cursiva, sobre o papel "Tojal" do Estado, estas frases fáceis: "Ilmº e Exmº Sr. - Tenho a honra de comunicar a V. Exª... Tenho a honra de passar às mãos de V. Exª..."
Aos domingos repousava: instalava-me então no canapé da sala de jantar, de cachimbo nos dentes, e admirava a D. Augusta, que, em dias de missa, costumava limpar com clara de ovo a caspa do tenente Couceiro. Esta hora, sobretudo no Verão, era deliciosa: pelas janelas meio cerradas penetrava o bafo da soalheira, algum repique distante dos sinos da Conceição Nova e o arrulhar das rolas na varanda; a monótona sussurração das moscas balançava-se sobre a velha cambraia, antigo véu nupcial da Madame Marques, que cobria agora no aparador os pratos de cerejas bicais; pouco a pouco o tenente, envolvido num lençol como um ídolo no seu manto, ia adormecendo, sob a fricção mole das carinhosas mãos da D. Augusta; e ela, arrebitando o dedo mínimo branquinho e papudo, sulcava-lhe as repas lustrosas com o pentezinho dos bichos...
Eu então, enternecido, dizia à deleitosa senhora:
- Ai D. Augusta, que anjo que é!
Ela ria; chama-me enguiço! Eu sorria, sem me escandalizar. "Enguiço" era com efeito o nome que me davam na casa - por eu ser magro, entrar sempre as portas com o pé direito, tremer de ratos, ter à cabeceira da cama uma litografia de Nossa senhora das Dores que pertencera à mamã, e corcovar. Infelizmente corcovo - do muito que verguei o espinhaço, na Universidade, recuando como uma pega assustada diante dos senhores lentes; na repartição, dobrando a fronte ao pó perante os meus diretores-gerais. Esta atitude de resto convém ao bacharel; ela mantém a disciplina num Estado bem organizado; e a mim garantia-me a tranquilidade dos domingos, o uso de alguma roupa branca e vinte mil réis mensais".
Aqui fica este aperitivo para nos deixarmos embrenhar no mundo da escrita maravilhosa de Eça e da sua mundivisão, onde nunca falta o seu grande sentido de ironia, de humor requintado, de crítica social, política e religiosa.
Bom proveito!
Manuel Feliciano

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